Paulo Arantes
Na visão desconcertante de um historiador, nada mais parecido com o crime organizado do que o Estado nos seus primórdios. Nos primeiros tempos da formação dos modernos Estados territoriais europeus, não era muito nítida a distinção entre senhores da guerra, bandidos e governantes. Quando um chefe guerreiro e seu bando eliminavam os concorrentes e monopolizavam a violência num determinado território, sua primeira providência era passar a “governar”, quer dizer, extrair tributos das populações concernidas para financiar novas guerras de expansão e consolidação do seu domínio. Assim sendo, tampouco era muito clara a diferença entre arrecadação de impostos e extorsão. Criminosos quando se organizam adotam o mesmo esquema de chantagem: ameaçam com a violência e depois cobram o devido pagamento pela “proteção” que oferecem contra essa mesma ameaça. Não é outra a lógica originária do Estado, continua nosso historiador: os governantes também vendem proteção, sobretudo quando a repressão do Estado vem a ser a principal ameaça pairando sobre a cabeça do seu próprio povo, à qual acrescenta a dos inimigos, internos ou externos, que ele mesmo se encarrega de inventar ou provocar, e contra os quais oferece, é claro, “proteção”. Em bom inglês – a língua original do argumento que estou citando –, alguém que produz tanto o perigo quanto o escudo bem pago que o afasta chama-se racketeer.
Sem tirar nem por, essa a cena primitiva que Brecht entreviu na ascensão da “coisa imunda” que a República de Weimar pariu ao desmoronar. A última palavra do capitalismo, o sintoma terminal de toda uma civilização, sua “flor mais delicada” – como Brecht uma vez se referiu a Hitler – nada mais era afinal do que a repetição apocalíptica daquele “ato arcaico de despotismo”, na fórmula original de um filósofo para o gesto fundador da modernidade. Projeto inacabado ou o entra-e-sai de um grande show de gângsteres? Al Capone, dito Scarface, nunca se enganou a respeito: referindo-se certa vez a Napoleão Bonaparte, admitiu que este havia sido de fato o maior gangster da história (The world’s greatest racketeer), mas que mesmo assim ainda teria alguma coisa a lhe ensinar. No último ato como no prólogo, novamente compra e venda de proteção. “Nós o contratamos”, teria assegurado o aristocrata von Papen à camarilha que rodeava o Presidente do Reich, nosso estimado Dogsborough. Voltando à parábola de Brecht é bom não esquecer que Arturo Ui não oferece seus serviços a qualquer um, mas não por acaso a um truste. É que os lucros da coerção não exigem apenas escala. Os grandes empresários da morte não poderiam prosperar sem a indispensável alavanca dos monopólios, a começar pelo mais decisivo deles, o da violência. Outra vez o estágio imperialista mais avançado denuncia seu caráter terminal ao emendar na era inaugural da dominação direta, a apropriação violenta sem maiores rodeios. Que a história portanto tenha sido sempre a história dos monopólios – um enredo de gangues e protection rackets – dá notícia a incrível semelhança entre o modus operandi ancestral da máfia e as grandes organizações dos big business, tirante talvez a interpretação um tanto literal da imperiosa necessidade de liquidar a concorrência e enquadrar os clientes recalcitrantes. Entre tantas outras, a observação se encontra num antigo ensaio rigorosamente brechtiano de Hans Magnus Enzensberger sobre a Chicago de Al Capone, a seu ver, o modelo da sociedade terrorista do século XX, aliás uma wide open city como Mahagony, onde se confundiam, como se há de recordar, o Imperium dos gângsteres e a ditadura do divertimento compulsivo. Ninguém mais ajustado e integrado ao mundo moderno dos negócios do que aquele enxerto bárbaro de outras eras: a mais avançada sociedade capitalista do mundo soube encaixa-lo como se estivesse preparada desde sempre para a regressão. Um amálgama exemplar de anomia selvagem e do mais estrito conformismo, que na década seguinte Hitler levaria a seu fecho conclusivo.
Um ciclo histórico depois, o ventre que pariu a coisa imunda continua fértil. O desenvolvimento descortinado pela parábola brechtiana terá sido talvez provisoriamente suspenso, mas não interrompido. Ele ameaça se completar através de uma guerra sem fim de âmbito global, que tende a se fragmentar numa profusão de guerras civis legais, sancionadas por um estado difuso de exceção, eternizando-se em meio à indiferença das cliques blindadas e a tumulto crescente dos perdedores confinados no arquipélago de bantustões em que o mundo está se transformando. Um terreno de inesgotável fertilidade para a compra e venda de proteção. Em tempo, já que o demônio da analogia anda solto novamente: o 11 de setembro de Adolf Hitler caiu num 27 de fevereiro (de 1933), data do incêndio do Reichstag; no dia seguinte, o estado exceção foi proclamado, em estrita conformidade com o artigo 48 da Constituição de Weimar, só que nunca mais foi suspenso; outra vez não por acaso o decreto que instituiu aquela ditadura constitucional de última geração, alegando urgência na defesa da sociedade contra os seus inimigos de turno, era uma ordem de “proteção”, autorizando uma indefinida “detenção preventiva” ou “custódia protetora” das referidas populações infectadas, “proteção” assegurada por espaços juridicamente vazios: os campos. Confrontado com o limiar que estamos atravessando, o raio de manobra do gangster de todos os gangsteres era relativamente provinciano. As tábuas do palco hoje sim representam toda a cena do mundo, e nela opera um incomensurável racketeer. Os senhores da guerra estão de volta, até mesmo na forma arcaica porém high-tech dos novos mercenários terceirizados por meio de empresas militares privadas. Como na pré-história do sistema de dominação cuja hora da verdade está de novo se reapresentando, já não é mais inequívoca outra vez a separação entre chefes de guerra, governo e crime organizado. Aos quais veio juntar-se nestes últimos tempos de imperialismo da segurança a figura patética do agente humanitário, com ou sem fumigações. Nada mais parecido com o cenário original da parábola de Arturo Ui do que o Iraque ocupado e privatizado de hoje. Estão todos lá: um Vice-Rei, os negócios do cartel da couve-flor e as forças da “proteção” contratadas para vigiar uns e outros. Sem falar na mescla original de estado-de-sítio – próprio da fusão entre “governança” e guerra intermitente – e a anomia característica de uma nova “fronteira”, na acepção americana do termo. Não é segredo que desde a guerra do Golfo, a superpotência remanescente vende – e muito caro, afinal seus custos de manutenção são astronômicos – “proteção” contra a ameaça de um inimigo tão proteiforme quanto o caos sistêmico em que o mundo do capital está mergulhando. Sabemos todavia que este descomunal sorvedouro de riqueza alheia, que este país rentista por excelência, como nos bons tempos do imperialismo clássico, é ele mesmo a fonte da ameaça para si mesmo e para o resto do planeta. Seria preciso acrescentar todavia que não se trata de ameaças contra a ordem mundial, mas que a verdadeira ameaça é esta mesma ordem mundial, sendo o capitalismo hoje sinônimo de catástrofe. Como no capitalismo turbinado de agora não é mais possível distinguir acidente de atentado, tudo se passa como se o próprio sistema chantageasse a si mesmo e fosse o seu próprio mega-gangster. A apologética contemporânea estilizou a desgraça afirmando que a ultramodernidade é antes de tudo uma “sociedade de risco”. Estamos vendo que no fundo se trata mesmo de uma sociedade de rackets, como Arturo Ui se encarregara de demonstrar.
* Texto publicado no programa do espetáculo A Resístivel Ascensão de Arturo Ui, 2004.
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