24 abril, 2010

Seattle 99



Dez anos se passaram desde a batalha de Seattle.

E nestes anos, a “energia” e o espírito do Tempo (Zeitgeist) residiram no que se chamou, erroneamente, de movimento anti-globalização. O lema do movimento? “Outro mundo é possível.” O espírito fluiu dos zapatistas, das comunidades de base, do MST, das convenções dos povos indígenas, dos movimentos anti-agribusiness da Índia para Seattle, Porto Alegre, Gênova, todos os Fóruns Sociais, até que a infiltração das ONGs (cavalos de tróia corporativos) e dos partidos políticos tentasse se metastasear ao interior do movimento.

Ainda não se fez um levantamento de tudo o que de bom esses 10 anos representaram para o mundo. Eu começaria citando as desgraças que foram impedidas de se materializar graças ao ativismo do “movimento” – como por exemplo, a não-realização da ALCA (FTAA em inglês), só para começar, o estancamento temporário da sangria provocada pela “Trindade do Mal”: a OMC (WTO em inglês), FMI (IMF em inglês) e Banco Mundial (World Bank), a profética previsão do corrente mega-roubo econômico e financeiro a que se dá o nome de “crise”, a absoluta prioridade que foi dada às ações para se implantar uma economia sustentável e alterar ou minimizar as mudanças climáticas.

Dez anos depois, o lema virou “Este mundo é impossível.” E mais que um lema, é o grito dos icebergs que derretem, da terra que se desertifica, das cidades que se asfixiam com todo tipo de poluição, das espécies que se extinguem.

De modo que “Outros mundos são iminentemente necessários”, se quisermos continuar vivos. Quem viveu intensamente esses anos, surfando “na crista da onda” a aventura que é apostar na sobrevivência do planeta sabe que valeu a pena, apesar do insustentável peso do poder esmagador imposto pelo “sistema totalitário mercadológico”, pela plutocracia que virou descarada “putocracia”. Quem viu a caravana passar e nem sequer conseguiu ladrar timidamente… pelo medo de se comprometer, pela insegurança de se posicionar, ou por fazer parte integrante dos agentes da metástase… tem mais uma chance significativa para se renovar e fazer fluir o espírito do tempo.

Acompanhar ou participar do que acontecerá em Kopenhagem nos próximos dias e assistir cuidadosamente a este vídeo pode ser um bom começo para se se libertar das amarras do sistema totalitário mercadológico, se desprogramar, se desendoutrinar, se desentupir.

Afinal, como diz Schopenhauer, citado no filminho:
“Toda verdade passa por três estágios. Em primeiro lugar, ela é ridicularizada; depois nos opomos violentamente contra ela; enfim, a aceitamos como se ela fosse natural.”


Fonte : http://imediata.org/

21 abril, 2010

"ah garotinha ruiva"

She Shaid...

Ela disse: "eu sei como é estar morta
. Sei como é estar triste"
E ela me fez sentr como se eu nunca tivesse nascido.
Eu disse: "Quem pôs essas coisas na sua cabeça. Coisas que me fazem sentir mal"
E você está me fazendo sentir como se eu nunca tivesse nascido.
Ela disse: "Você não entende o que eu digo"
Eu disse: "Não, não, não, você está errada"
Quando eu era um garoto, tudo estava bem. Tudo estava bem.
Eu disse: "Apesar de você saber o que você sabe. Eu sei que estou pronto pra partir"
Porque você me faz sentir como se eu nunca tivesse nascido.
Ela disse: "Você não entende o que eu digo"
Eu disse: "Não, não, não, você está errada"
Quando eu era um garoto, tudo estava bem. Tudo estava bem.
Ela disse: "Eu sei como é estar morto. Eu sei como é estar triste"
Eu sei que isto é como estar morto.

[T.B]

20 abril, 2010

(o interesse de Brecht por Stanislavski)

APROXIMAÇÃO E DISTANCIAMENTO

(o interesse de Brecht por Stanislavski)

Iná Camargo Costa*

História

Embora a grande contribuição de Stanislavski para o trabalho do ator tenha ocorrido nos últimos anos do século XIX e início do século XX, só após a revolução de Outubro de 1917 seu trabalho começou a ser sistematizado. A única obra por ele publicada em vida e única não-sistemática, Minha vida na arte, é de 1923-1925[1]. Muito depois de sua morte (1938) é que se publica na URSS O trabalho do ator sobre si mesmo (1955), em dois volumes que no Ocidente ficaram conhecidos como A preparação do ator e A criação de um papel, e finalmente em 1957 é publicada A construção da personagem.

Estas três obras sistemáticas, que propriamente constituem o "método stanislavski", por sua vez, foram publicadas no Brasil entre os anos de 1960 e 1970, sempre em tradução das edições americanas, que começaram a sair nos Estados Unidos em 1936 graças ao empenho de Elizabeth Reynolds Hapgood[2]. Destas primeiras informações, já se pode afirmar com Brecht que no Ocidente o sistema Stanislavski surgiu como um tema do teatro americano de esquerda[3], que primeiro discutiu "o método" a sério.

Como não é o caso de repisar aqui algumas das informações básicas sobre a trajetória de Stanislavski, já que elas estão disponíveis nas edições brasileiras de suas obras fundamentais, trataremos apenas de suas compreensíveis relações com a Revolução, pois estas respondem pelo modo como Brecht reagiu à sua "canonização" pelos stalinistas.

Para que não se perca o senso das proporções, porém, não custa lembrar que em 1917 Stanislavski já estava com 54 anos e sua própria revolução teatral, de que trataremos adiante, completara 22 anos (o Teatro de Arte de Moscou, doravante a ser referido como TAM, estreou em 1898). Sem se apresentar propriamente como hostil às providências da Revolução no campo das artes cênicas (à diferença de alguns de seus mais famosos discípulos, como Vakhtangov e Meyerhold, que aderiram com entusiasmo), Stanislavski limitou-se inicialmente a defender seu território e sua concepção edificante de teatro (espaço onde os trabalhadores poderiam aprender "bons modos"), no que teve bastante sucesso. Em retribuição, os revolucionários asseguraram a continuidade de seu trabalho, no interesse de preservar bons exemplos da "velha cultura"[4].

Mantendo basicamente a rotina do TAM (encenação preferencial de peças de Tchékhov e Gorki), Stanislavski e seus discípulos não abandonaram de todo a experimentação, quando possível apresentando "peças novas" que claramente dialogavam com os acontecimentos e, em momentos cruciais, registravam posições e mesmo diagnósticos importantes. Para não entrar em detalhes que nos levariam longe demais, limitemo-nos a referir a primeira experiência nova, o Caim de Byron (texto de 1821), que adota o ponto de vista do fratricida em plena guerra civil (o espetáculo é de 1920). Alguns anos depois, em 1926, Stanislavski patrocinou a encenação da peça de Bulgakov, Os dias dos Turbins (direção de Sudakov) um dos maiores sucessos do TAM em tempos soviéticos (só saiu de cartaz em 1941), que foi violentamente criticada. Um detalhe que não escapou a Brecht: durante a consolidação da corrente stalinista no poder, a peça tem por assunto as tribulações de uma família ligada ao exército branco (contra-revolucionário) durante a guerra civil e não esconde a simpatia por essa gente.

Mas diga-se também, e a bem da verdade, que nesse mesmo ano de 1926 o próprio Stanislavski dirigiu a montagem de Corações ardentes (Ostrovski), espetáculo que Meyerhold considerou perfeito e, para Brecht, que o assistiu com enorme prazer em 1955, manifestava "toda a grandeza de Stanislavski"[5]. Mais adiante tentaremos avançar uma hipótese para explicar esta convergência.

Para concluir este vôo rasteiro, cabe ainda lembrar que, após o ataque cardíaco sofrido durante as comemorações do 300 aniversário do TAM (1928), nosso diretor diminuiu radicalmente as suas atividades, o que não o impediu de acompanhar de longe a encenação do Otelo em 1930 (que finalmente saiu como ele queria), nem de dirigir em 1932 uma adaptação de Almas mortas (Gogol), seu último espetáculo. A esta altura (estamos a dois anos do Congresso de Escritores que proclamará a palavra de ordem do realismo socialista), o Teatro de Arte de Moscou já dá régua e compasso ao teatro soviético hegemônico.

A revolução stanislavskiana

Em Minha vida na arte[6] Stanislavski reconstitui de modo vivo e extremamente interessante as diferentes linhas e períodos que marcaram a trajetória do TAM até os anos vinte. De seus relatos é possível abstrair com razoável dose de verdade (como ele gostava) os dois passos que devidamente combinados configuram a revolução levada a efeito por ele e demais companheiros daquela companhia.

Depois de um primeiro perído atuando, dentro do possível, nos moldes da tradição[7] ainda presente nos teatros russos, surge para eles, por iniciativa de Nemiróvitch-Dántchenko o problema Tchékhov[8], que foi mais ou menos resumido nestes termos: "Todos os teatros da Rússia e muitos europeus tentaram encenar Anton Tchékhov utilizando os recursos cênicos tradicionais. Todas as tentativas fracassaram. E deve-se ter em conta que suas peças (...) eram representadas pelos melhores artistas do mundo" (p.245).

Trocando em miúdos, e permanecendo nas formulações de Stanislavski, o problema decorria da insatisfação produzida pelas leituras e encenações das peças de Tchékhov, para não falar em incompreensão mesmo. Assumindo a máscara de leitor desavisado, o diretor enumera as suas próprias decepções com essas peças: são pouco teatrais, monótonas, entediantes, não apresentam nada de particular, nada de surpreendente, nada de novo; não se sabe o que interessa, se a fábula ou o tema; nenhum dos personagens se destaca a ponto de interessar a um grande ator e assim por diante.

Amigo de Tchékhov e com vasta experiência literária, Nemiróvitch-Dántchenko, o primeiro diretor do TAM, ensinou a Stanislavski e ao elenco da companhia como ler e buscar o caminho para interpretar corretamente a obra do dramaturgo, que até então só tivera decepções. Entre outras coisas, ele reclamava do que hoje chamamos super-representação, aquela maneira de atuar que produz uma clara percepção de artificialismo e, quando exagerada às raias da caricatura involuntária, no Brasil desqualifica o praticante como canastrão[9]. Depois de muita ruminação, conta Stanislavski, "nós nos convencemos de que era impossível separar forma de conteúdo, ou seja, o aspecto literário, psicológico ou social, das imagens e da expressão necessária que, em seu conjunto, concretizavam em cena a arte da poesia [de Tchékhov]" (p.249). A partir dessa compreensão conseguiram "transpor para a cena alguma coisa do que está em Tchékhov" na medida em que encontraram uma nova maneira de encená-lo, uma maneira muito particular, que foi a principal contribuição do TAM para a arte dramática (p.245).

Esta maneira nova e "natural", por oposição à artificial acima referida, que depois constituirá o núcleo do "método", em Minha vida na arte decorre da linha de trabalho voltada para a "intuição" e o "sentimento" e foi descoberta na busca de alternativas aos clichês e convencionalismos que ainda imperavam até mesmo nos mínimos detalhes dos trabalhos do próprio TAM. Na encenação da Gaivota (1901) foram dados grandes passos, mas nem tudo se resolveu, como o próprio Tchékhov sugeriu ao criticar o figurino escolhido pelo próprio Stanislavski para seu personagem Trigorin. O dramaturgo observou-lhe na estréia que este devia usar botas surradas e calça xadrez (Stanislavski usara roupas brancas e complementos impecáveis e demorou bastante para entender seu erro "técnico").

Depois de compreendidas, as peças de Tchékhov puderam finalmente apresentar no palco as mesmas delícias encontradas por leitores como Dántchenko. Resumindo os achados de Stanislavski, elas têm ação e movimento em doses gigantescas, mas não nas manifestações exteriores e sim em seu desenvolvimento interno. Tchékhov provou que a ação cênica pode se concretizar no sentimento e este pode fundamentar a cena; o ator não tem que representar (segundo as convenções agora superadas), tem que ser, viver seu personagem. Quem faz os personagens de Tchékhov precisa perceber que com muita frequência eles dizem precisamente o que não sentem, que há um claro desencontro entre discurso e sentimento e isso precisa vir para a cena sem maior alarde. Mais ainda: este dramaturgo dispensa as vivências triviais que provêm da superfície da alma; suas peças já não precisam das sensações desgastadas, desmoralizadas e convencionais que perderam toda intensidade. Sua especialidade é expor estados de espírito que frequentemente são intraduzíveis em palavras; pressentimentos, alusões, sinais e sombras de sentimentos que vêm do fundo da alma e, em contato com eles, a nossa alma se inflama, produzindo sentimentos vivos, mesmo que ainda sem nome. Com um detalhe nada desprezível: estes sentimentos e sensações estão impregnados da poesia sempre fresca e florescente da vida das ruas (pp.246-9).

Em outras palavras, ao escrever suas memórias Stanislavski tem plena consciência de que a novidade produzida por seu teatro foi uma linguagem cênica (obra coletiva que envolveu atores, diretor, dramaturgista, cenógrafo e demais "técnicos") capaz de traduzir o novo conteúdo das peças de Tchékhov: relações, sentimentos, palavras, ritmos (pausas), gestos, etc., correspondentes a uma experiência histórica que não tinha equivalente na dramaturgia nem no repertório teatral herdados por sua geração. É este o feito que ele reivindica.

Mas sua revolução só se completará no passo seguinte, igualmente promovido por Tchékhov e Nemiróvitch-Dántchenko. O primeiro apresenta Gorki ao TAM e convence seus dirigentes de que só eles seriam capazes de traduzir cenicamente a sua obra literária. E o segundo novamente ensina "como ler" Gorki. Stanislavski lembra que a conjuntura pré-revolucionária (ele se refere à revolução de 1905) já levara a escola que mantinham a selecionar para seus cursos de preferência candidatos provenientes das "massas populares"; "a efervescência revolucionária e o nascimento da revolução trouxeram para o teatro toda uma série de obras que refletiam os ânimos político-sociais de descontentamento, protesto e sonhos com um herói capaz de dizer a verdade com energia", diz ele (p.278) a propósito de seu próprio sucesso no papel de Dr. Stockmann, em O inimigo do povo, de Ibsen.

Das peças que Gorki estava escrevendo, a primeira que ficou pronta foi Os pequenos burgueses, encenada pelo TAM na temporada 1901-2. A experiência não deu muito certo, mas parte importante da responsabilidade pela frustração deve ser debitada à eficiente vigilância da censura e da polícia sobre o dramaturgo e, em decorrência da "perigosa" aproximação, sobre a companhia teatral. Para começo de conversa, depois de demoradas negociações a peça só foi liberada com cortes apenas para os sócios (os abonados burgueses e aristocratas que ajudavam a manter a companhia através de assinaturas) e não para o público em geral. Além disso, uma série de incidentes, desde o ensaio geral aberto apenas a convidados (cercado por policiais como numa operação de guerra), acabou levando à desistência da empreitada.

Com Ralé, na temporada seguinte, peça na qual Stanislavski fez o papel de Satin, o TAM deu o segundo passo. Em suas palavras: "Novamente estávamos às voltas com um problema difícil; um tom novo e uma nova maneira de representar, uma nova vida, um romantismo insólito, uma ênfase que por um lado beirava à mais perfeita teatralidade e, por outro, ao sermão. Quando se trata das obras de Gorki, é preciso dizê-las de modo tal que cada frase tenha som e vida. Seus monólogos didatizantes e próximos da pregação (...) têm que ser pronunciados com simplicidade, com elevação natural interior, sem falsa teatralidade nem grandiloqüência; do contrário, corre-se o risco de transformar uma obra séria em melodrama vulgar. Foi preciso apropriar-se do estilo peculiar do vagabundo, sem o confundir nem mesclar com o tom teatral comum das peças de costume, e ainda menos com a declamação falsa e vulgar" (p.282). Para realizar tal proeza, todo o elenco do TAM tratou de excursionar pelo submundo dos albergues noturnos, onde acabou encontrando a matriz real da "poesia das ruas" que, como Tchekhov mas em outro registro, Gorki elaborou literariamente e queria ver e ouvir no teatro. Com esta experiência, Stanislavski, pelo menos, aprendeu a utilizar "material vivo" para o seu trabalho de criação de "homens e imagens".

Ralé fez um sucesso estrondoso que transformou Gorki em artista com legiões de admiradores. Mas o perfeccionista Stanislavski não ficou inteiramente satisfeito com seu próprio trabalho de ator. Para ele, como seu personagem era a tendência (política) personificada, ao fazê-lo acabou dando prioridade ao significado político-social da peça; isso produzia nele algum mal estar, pois não conseguia viver os pensamentos e sentimentos do personagem. Em sua avaliação, nunca chegou a alcançar esse objetivo.

Depois disso, os fundamentos do sistema stanislavskiano estão lançados. E dispondo destas informações talvez fique mais fácil acompanhar com serenidade e distanciamento (isto é: em atitude épica) a relação de Brecht com esta história.

Identificação e Distanciamento

É compreensível que Stanislavski só tenha se tornado um assunto para Brecht quando este já se encontrava no exílio. Até a chegada de Hitler ao poder (1933) ele estava envolvido com a perspectiva de uma Revolução na Alemanha e com a sua própria revolução no teatro que, como se sabe, tinha entre seus opositores os veteranos do naturalismo alemão (inclusive críticos). Nunca é demais lembrar: estes também eram de esquerda e, de um modo geral, ligados ao Partido Socialista. E, pelo que ficou dito acima, também é compreensível que seu interesse em matéria de teatro soviético estivesse voltado para experiências como as do agitprop e as de Meyerhold, mas devidamente preocupado com o modo como este último era recebido pela crítica alemã, como se pode ver num texto de 1930 sobre o assunto: em nome das "emoções", estes críticos descartavam a contribuição revolucionária do diretor para o teatro. Caprichando na ironia profunda, Brecht conta que eles reclamaram da falta de modos dos personagens ingleses na peça A China brame, dirigida por Meyerhold e encenada em Berlim, acrescentando que reclamariam, numa eventual encenação de alguma peça sobre Átila, o huno, da omissão de seu amor pelas crianças[10].

Dentre as referências datadas de Brecht a Stanislavski, uma das mais recuadas é de 1938, mais precisamente de 12 de setembro de 1938, em seu Diário de trabalho[11]. Ali Brecht registra que num jornal alemão editado em Moscou, o Deutsche Zentral-Zeitung, o culto Stanislavski (cujo cadáver nem esfriou) vai de vento em popa. Polemizando com estes sacerdotes, aos quais chama de murxistas[12], Brecht observa que no "método" a razão não é suprimida, longe disso, é um mecanismo de controle. Por exemplo: quando Stanislavski pede a um ator que a expressão seja justificada, ele quer que a razão atue. Completando o argumento: aqueles sacerdotes que exaltam as emoções fingem não saber que elas não são no mínimo tão corruptas quanto as funções racionais; eles desconsideram que todo pensamento necessário tem seu correlativo emocional e que todo sentimento tem o seu correlativo intelectual. Seu diagnóstico a respeito do processo em andamento é fulminante: "a hipocrisia da Escola de Stanislavski, com seu templo da arte, sua celebração da palavra, seu culto do poeta, sua interioridade, sua pureza, sua exaltação, seu natural, do qual se teme sempre e inevitavelmente "sair", nada mais é que o reflexo de seu atraso mental, de sua crença "no" homem, "nas" idéias, etc."[13].

O maior interesse desta entrada do diário é a clara demonstração de que o problema de Brecht não é Stanislavski propriamente dito, mas a mistificação que teve início quando da adoção do realismo socialista como palavra de ordem stalinista para as artes em 1934, programa no qual, no âmbito da encenação teatral, coube a Stanislavski, malgré lui même, o papel de profeta, por assim dizer. Note-se, entretanto, que as "sagradas escrituras" dessa religião só começaram a ser publicadas quando o culto já entrava em declínio até mesmo no âmbito oficial, o que não é propriamente casual.

Como se sabe, Walter Benjamin se refere a Brecht como dramaturgo dialético[14] e demonstra exaustivamente sua tese nos ensaios sobre o companheiro de lutas. Provavelmente, o filósofo não teve acesso aos diários do amigo, quando ambos estiveram exilados[15], mas se tivesse tido certamente diria que o seguinte comentário sobre a identificação stanislavskiana é um bom exemplo de exercício de dialética, diretamente inspirado no Hegel da Ciência da Lógica[16]: "de um lado, o ato de identificação recorre a elementos racionais e, de outro, o efeito de distanciamento pode ser aplicado de maneira puramente sentimental. Stanislavski desenvolveu longas análises para chegar à identificação, e o efeito de distanciamento dos panoramas de feira ("Nero contempla o incêndio de Roma" [...], "o terremoto de Lisboa") é puro sentimento. No teatro aristotélico a identificação também é intelectual; o teatro não-aristotélico também recorre à crítica sentimental"[17].

Na verdade, sempre no espírito brechtiano, todo o mistério da identificação poderá ser dissolvido se recorrermos à providência dialética de historicizá-lo, o que Brecht naturalmente fez nos mais diversos momentos de seus Escritos sobre teatro e sobretudo no início da Compra do Latão. Desenvolvido, como vimos acima, às voltas com as dificuldades para encenar peças de Ibsen, Tchekhov e Gorki – isto é, sob o signo do naturalismo – o próprio trabalho de Stanislavski em busca da identificação entre ator e personagem é um avanço considerável na história das artes cênicas, no bojo de importantes conquistas sociais e culturais. Por isso Brecht observa: "o sistema de Stanislavski é um progresso pelo simples fato de ser um sistema. O jogo que ele desenvolve produz a identificação de maneira sistemática; esta, portanto, não é efeito do acaso, nem do humor, nem da inspiração. O conjunto [ensemble] alcança uma alta qualidade técnica que tem o objetivo de provocar uma identificação total do espectador. O progresso em questão fica particularmente visível depois que essa identificação começa a acontecer com personagens que até então não tinham nenhum papel no teatro: os proletários. Não é por acaso que na América foram justamente os teatros da esquerda que começaram a se apropriar do sistema de Stanislavski. Esse modo de representar tem a possibilidade de permitir uma identificação com o proletário, até então impossível"[18].

Ainda segundo Brecht, os esforços de Stanislavski para desenvolver um método capaz de produzir a identificação mostram que, a partir do fim do século XIX, justamente pelos novos problemas e personagens que os melhores dramaturgos criaram, foi ficando cada vez mais difícil produzi-la. É neste ponto que os caminhos dos dois diretores se separam, pois enquanto Stanislavski trabalhou para salvar uma prática que tem a idade do drama (burguês), Brecht e outros (como Meyerhold) buscaram a sua superação. Mas vale a pena passar a palavra a Brecht: "Muito ingenuamente, Stanislavski tratou as dificuldades como fraquezas passageiras, puramente negativas, que deviam e podiam ser superadas a qualquer preço. (...) Não lhe ocorreu que as perturbações [no processo de identificação] pudessem ser conseqüência de mudanças irreversíveis que afetaram a consciência do homem moderno (...) Se isto lhe ocorresse, talvez ele se tivesse perguntado se ainda era o caso de procurar promover a identificação total. Foi a questão que a teoria do teatro épico se colocou. O teatro épico se interessou pelas dificuldades, pelas perturbações – e se esforçou para encontrar um modo de atuar que permitisse renunciar à identificação total"[19].

Voltando uma última vez à determinação histórica do trabalho de Stanislavski, agora posto em perspectiva, na Compra do latão Brecht ao mesmo tempo faz o elogio e circunscreve o seu alcance: "As obras principais de Stanislavski, que aliás fazia muitas experiências e realizava peças fantásticas, foram as da época naturalista. No caso dele deve falar-se mesmo de obras pois, como é habitual com os russos, algumas de suas encenações já se realizam há mais de 30 anos sem qualquer modificação, embora sejam já interpretadas por atores diferentes. As suas obras naturalistas consistem então em retratos sociais minuciosamente executados. (...) A ação das peças é mínima, a ilustração pormenorizada dos estados de alma ocupa o tempo todo, trata-se de investigar a vida interior de algumas personagens individuais, no entanto há também alguma coisa para os investigadores sociais. Quando Stanislavski estava na força de sua idade, a revolução aconteceu. O seu teatro foi tratado com o máximo respeito. Vinte anos depois da revolução foi ainda possível estudar nesse teatro, como num museu, o modo de vida de camadas sociais entretanto desaparecidas"[20].

Aprender com Stanislavski

Em 1947, quando ainda estava nos Estados Unidos, chegou às mãos de Brecht uma espécie de manual stanislavskiano publicado em Berlim com o título O livro alemão de Stanislavski, organizado por alemães veteranos das lutas teatrais dos anos 20 que se refugiaram na URSS durante o nazismo. Observando que "aqui [nos EUA] também o stanislavskianismo significa um protesto contra o teatro mercantil", não deixa de avisar que no tal manual "não se encontra um único exercício tirado da luta de classes", e que seus autores propõem um realismo curioso, "praticam um culto alambicado da realidade"[21]. Algum tempo depois, a caminho de Berlim, volta a escrever sobre o manual: "o que particularmente me repugna [nele] é esse tom de moralismo tacanho"[22].

Todo mundo sabe que na Alemanha Oriental a ortodoxia soviética reinou quase absoluta, sobretudo nos primeiros anos da "reconstrução"; por isso não há necessidade de procurar detalhes sobre o modo como esse manual funcionou na vida teatral hegemônica no período (o Berliner Ensemble era uma exceção mantida sob permanente vigilância). Para se armar o problema, é só lembrar que nem na URSS estavam disponíveis os textos do próprio Stanislavski. Daí o interesse que pode haver em seu conselho a Joshua Logan[23], que o visitou em 1931 e deu notícia deste encontro na introdução ao livro A construção da personagem: "Nosso método nos serve porque somos russos, porque somos este determinado grupo de russos aqui. Aprendemos por experiências, mudanças, tomando qualquer conceito gasto de realidade e substituindo-o por alguma coisa nova, algo cada vez mais próximo da verdade. Vocês devem fazer o mesmo. Mas ao seu modo e não ao nosso. O método que usamos em 1898 quando foi fundado o Teatro de Arte de Moscou já foi modificado mil vezes. Alunos meus, ou atores da nossa companhia se impacientaram e romperam conosco. Formaram novas companhias e hoje acham o Teatro de Arte de Moscou antiquado, fora de moda. Talvez eles descubram algo mais próximo da verdade do que nós descobrimos"[24].

Se Brecht não conversou com o diretor sobre o assunto, provavelmente leu esta introdução, de 1949, na tradução americana do livro. Independente desta hipótese, é certo que Brecht conhecia esta disposição de Stanislavski para acolher e aprovar justamente os que procuraram novos rumos (novas e melhores verdades)[25], o que também explica as suas insistentes manifestações favoráveis ao estudo das obras do diretor quando de volta à Alemanha.

Em 1951 o Comitê das Artes alemão começou a organizar, por assim dizer, uma Jornada de estudos sobre Stanislavski que afinal acabou acontecendo em 17 a 19 de abril de 1953[26]. Como se pode depreender das observações de Brecht, as jornadas foram mal organizadas e pior realizadas, à base de muita improvisação e (acrescentaríamos) exercícios de dogmatismo explícito. Por isso Brecht escreve que a organização precisa melhorar; a discussão deve ser também sobre teatro (!!!); as teses a serem debatidas nem sequer foram divulgadas; os participantes improvisaram tudo, e assim por diante[27]. Suas propostas seguiam obviamente na direção contrária e contemplavam questões elementares, como por exemplo: é preciso publicar os principais escritos de Stanislavski; é preciso historicizar Stanislavski, estudar cada fase de seu trabalho, saber o que ele mesmo apontou como errado ou insuficiente em seus próprios estudos, enfim, o que ele escreveu na última fase, a da construção do socialismo na URSS[28]. Em suas próprias palavras: "Um breve estudo do modo de trabalho de Stanislavski basta para revelar uma grande riqueza de exercícios e de procedimentos úteis numa representação realista. Há muito o que aprender, mas é preciso realmente querer aprender"[29].

Por falar em querer aprender, Brecht recomenda um livro publicado em 1952 na Alemanha, Stanislavski ensaiando, de Toporkov. Dá destaque a uma cena da peça Os dias dos Turbins, já referida aqui, em que ocorre a chegada do oficial ferido à casa da família. Toporkov conta que o elenco avançou rapidamente para a representação dos "transportes sentimentais" dos familiares e Stanislavski criticou severamente o procedimento. Depois explicou aos atores o que eles estavam ignorando: naquela situação era prioritário providenciar um esconderijo para o ferido; aquelas pessoas estavam lidando com um oficial contra-revolucionário em plena guerra civil; não havia, portanto, tempo para se perder com "transportes sentimentais"[30]. Deste episódio, Brecht abstraiu uma importante lição que os atores podem aprender com o teatro de Stanislavski, o sentimento de responsabilidade diante da sociedade: "Stanislavski ensinou aos atores a importância social do jogo teatral. Para ele, a arte não é um fim em si, mas ele sabia que no teatro nenhum objetivo é alcançado se não for pela arte"[31].

Por essas afinidades, numa entrevista sobre as jornadas, afirmou que "nossos teatros podem aprender muito com Stanislavski. Posso citar de cabeça algumas coisas que é preciso estudar. O caráter diferenciado de suas representações, as inumeráveis sutilezas, a percepção dos aspectos contraditórios entre os seres e as situações, o natural artístico, a luta incessante contra os pontífices (que infestam os teatros). Há os esforços para estimular a imaginação dos atores e torná-la concreta. Há os exercícios para reforçar a observação e a percepção; indicações sobre a maneira pela qual o ator pode se livrar das influências perturbadoras da vida privada para ficar em condições de se consagrar inteiramente a seu papel; indicações sobre a maneira pela qual o ator pode realizar o ato de identificação com o personagem da obra"[32].

Para concluir, Brecht identifica particularmente duas afinidades entre seu próprio método e o do diretor russo. São elas a teoria das ações físicas e a compreensão do super-objetivo, tópicos a partir dos quais seria possível até falar em sistemas complementares, desde que se ultrapasse a mera contraposição entre identificação e distanciamento, percebendo o distanciamento como a superação dialética (a que preserva o superado) da identificação. Sobre este ponto, é interessante a resposta de Helene Weigel quando perguntada sobre o uso da identificação: "Nós representamos para as pessoas seres humanos que não são nós. Esse é o processo. Por que não haveríamos de ter consciência deste processo?"[33] Em outro lugar Brecht complementa: "Como dramaturgo, eu preciso da capacidade do ator de se identificar completamente e de se metamorfosear integralmente que Stanislavski foi o primeiro a pensar sistematicamente; mas igualmente, e acima de tudo, preciso da distância em relação ao personagem que o ator, enquanto representante da sociedade (de sua parte progressista), deve estabelecer"[34].

A partir desses apontamentos, talvez fique mais compreensível a manifestação crítica mais acabada sobre o problema da identificação que aparece na Compra do latão: "A última forma, até agora, de representar do teatro burguês assente numa base teórica elaborada, e que é associada ao grande dramaturgista e ator russo Stanislavski, utiliza uma técnica que pretende garantir a veracidade da representação. O comportamento dos atores não deve distinguir-se em nada, nem no mais pequeno pormenor, do comportamento dos homens na vida real. Através de um ato psíquico que consiste numa introspecção profunda, na qual o ator entra por inteiro na alma da pessoa a representar, transformando-se a si próprio completamente nesta pessoa, um ato que, quando conseguido corretamente, é realizado também pelo espectador, de modo que também este se identifica completamente com a pessoa representada. Stanislavski, que tem o mérito de ter estudado este ato com rigor quase científico, e que especificou o que é preciso para o conseguir, não acha necessário defendê-lo contra qualquer tipo de crítica: não está de modo nenhum preparado para uma tal crítica. A identificação parece-lhe um fenômeno de todo inseparável da arte, tão inseparável que não se pode falar de arte quando ela não acontece. Alguém que queira contrariar esse conceito – e eu por exemplo vejo-me forçado a contrariá-lo – encontra-se à partida numa situação difícil, pois não se pode negar que o fenômeno existe de fato na experiência artística pura e simples. (...) Nos últimos anos, alguns abandonaram todas as técnicas (e existem muitas, a de Stanislavski é só uma delas) que visam a obtenção da identificação completa. A razão para tal é que estas formas de representar permitem mostrar a verdade sobre a vida dos homens em comunidade (que é mostrada no teatro) só de uma maneira muito imperfeita."[35]

Leituras complementares

O que Brecht apontou como possível complementaridade entre o seu sistema e o de Stanislavski, em relação ao trabalho do ator, aparece para quem trabalha com dramaturgia numa simples superposição das análises que ambos fizeram do Otelo de Shakespeare. Detalhe decisivo: a análise de Brecht tomou a de Stanislavski como ponto de partida.

A segunda parte de A criação de um papel é dedicada ao Otelo. A forma dialogada da exposição responde pelo interesse em dar a conhecer os vários tipos de incompreensão, as leituras apressadas, para não falar nada das não-leituras de tipos que só se interessam pelo seu papel sem se preocupar com o significado geral da peça (o super-objetivo de Stanislavski). Como não teria propósito dar conta de cada episódio, ou incidente, passo a passo, vamos reproduzir aqui apenas os conselhos mais importantes do mestre, assim como a síntese da sua análise.

Para combater a "idiotia do papel" (comportamento do ator que não gosta de estudar nada, nem mesmo a própria peça em que vai atuar), Stanislavski dá este conselho: "vocês devem ler e ouvir tudo, todas as peças que puderem, críticas, comentários, opiniões. Isso abastece e amplia o seu estoque de material criador. Mas ao mesmo tempo têm que aprender a salvaguardar sua independência e afastar os preconceitos. Vocês devem formar opiniões próprias e não ir aceitando irrefletidamente as opiniões alheias. Precisam aprender a ser livres. É uma arte difícil, que só dominarão por meio do conhecimento e da experiência. Estes, por sua vez, serão adquiridos não por meio de uma lei qualquer, mas por todo um complexo de conhecimentos teóricos e trabalho prático no campo da técnica artística, e principalmente pela reflexão pessoal, pela penetração nas essências, por muitos anos de prática."[36]

Ainda em função do mesmo interesse, acrescenta o mestre: "o estudo da literatura mundial os auxiliará tremendamente nesses processos [de leitura]. Em toda peça, como em todos os seres vivos, há uma estrutura óssea, membros: mãos, pés, cabeça, coração, cérebro. Uma pessoa literariamente treinada estudará, como o anatomista, a estrutura e a forma de cada osso e articulação, e reconhecerá os seus componentes. Dissecará a peça, avaliará o seu significado social, fará surgir seus erros, o ponto onde ela bloqueia o desenvolvimento do tema principal ou se desvia dele. Poderá perceber rumos novos e originais numa peça, suas características internas e externas, o entrelaçamento das falas, o inter-relacionamento dos personagens, os fatos, os acontecimentos. Toda esta ciência, habilidade e experiência é extraordinariamente importante na apreciação de uma obra."[37]

Quanto ao Otelo, sem prejuízo da recomendação da leitura do livro inteiro (a análise do Inspetor Geral de Gogol também é muito reveladora), limitemo-nos às principais conclusões. A certa altura, para explicar por que os atores têm que se interessar pela posição social dos personagens, diz Stanislavski: "Otelo rapta a filha de um alto dignitário, e o faz na posição de um estrangeiro, que por acaso está a serviço do Senado. Este é um conflito que envolve duas classes diferentes e também duas nacionalidades. Além disso, trata-se também da dependência do Senado em relação a um negro que eles desprezam. Para os venezianos, este conflito é toda a tragédia."[38] E, para ilustrar a necessidade de recorrer aos conhecimentos (pressupostos pelo texto) referidos acima, temos o seguinte comentário analítico: "Não haveria o amor entre Otelo e Desdêmona sem o êxtase romântico de uma linda jovem; sem as histórias fascinantes, lendárias do Mouro, sobre suas proezas militares; sem os inúmeros obstáculos ao seu casamento desigual, que despertam as emoções de uma visionária jovem revolucionária; sem a súbita guerra, que impõe o reconhecimento das núpcias de uma jovem aristocrática com o Mouro, para salvar o país. E não haveria ruptura entre as duas raças sem o esnobismo dos venezianos, sem a honra da aristocracia; sem o seu desdém pelos povos conquistados, a um dos quais o próprio Otelo pertence; sem uma sincera convicção do opróbrio que é misturar o sangue negro e o branco".[39]

Depois de ler esta análise, Brecht achou que só tinha a acrescentar o seguinte: (com Stanislavski aprende-se "como deduzir da sociedade certas características de um personagem sobre as quais a ação se baseia. Exemplo: o ciúme de Otelo, que não é uma paixão "eterna" e muito menos universal (veja-se o exemplo dos esquimós). Isto pode ser expresso no teatro. Otelo não possui apenas Desdêmona, ele possui um cargo de general. Ele tem que defender seu cargo, pois pode ser-lhe roubado. Shakespeare escolheu expressamente um general que não herdou seu cargo, mas o conquistou por feitos específicos, e sem dúvida roubou-o de alguém. É portanto um general assalariado; ele não é proprietário de sua posição de general, como seria o caso de um senhor feudal, como consequência e expressão de sua situação na sociedade. Em suma, ele vive num mundo de complôs pela propriedade e pela posição em que a posição é tratada como uma propriedade. Da mesma forma, sua relação com a mulher amada se desenvolve como uma situação de propriedade. A paixão-ciúme, quando o teatro a mostra nestes termos, não é diminuída, mas ao contrário, é aprofundada. Neste mesmo processo aparecem as indicações de possibilidades que a sociedade tem de intervir."[40] Este deveria ser, segundo Brecht, o objetivo de uma montagem épica do Otelo. E ele acredita que isto corresponde ao super-objetivo de Stanislavski.



* Professora no Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada da FFLCH-USP.

[1] Devo esta e as demais informações sobre edições soviéticas da obra de Stanislavski a Arlete Cavalieri, a quem faço questão de agradecer. A obra completa em russo, Sobranie sochinenii, foi publicada em oito volumes entre os anos de 1954 e 1961; cf. RUDNITSKY, Konstantin. Russian and Soviet Theatre. London: Thames & Hudson, 2000 (1ª ed. 1988).

[2] Cf. prefácios e/ou notas editoriais das edições brasileiras, todas pela Editora Civilização Brasileira.

[3] A edição portuguesa de A compra do latão (Lisboa: Vega, 1999), a propósito de uma sugestão de exercício stanislavskiano para atores, informa que Brecht está citando um ensaio (provavelmente uma resenha) de Rapaport publicado em 1936 na revista americana Theatre Workshop, número 1, com o título The work of the actor (o mesmo da tradução de Elizabeth Hapgood). Em 1937 a mesma revista publica um outro estudo em seu número 2, The actor's creative work, de Sudakov. Há várias referências ao ensaio de Rapaport na Compra do Latão.

[4] Cf. EDWARDS, Christine. The Stanislavsky Heritage. New York: New York University Press, 1965, p.92.

[5] BRECHT, B. Journal de Travail (1938-1955). Paris: L'Arche, 1973, p. 555.

[6] STANISLAVSKI, K. Mi vida en el arte. La Habana: Arte y Literatura, 1985. Eventuais citações ou referências, todas desta edição e em tradução livre, serão feitas no corpo do texto.

[7] Nas palavras do diretor: "(crítica e público) não percebiam que o detalhismo na caracterização (cenário e figurinos) era um modo de disfarçar a imaturidade do elenco". Ironicamente, ainda comenta que o TAM vivia um claro paradoxo: contando com atores que mal sabiam caminhar no palco, todos tratavam com grande menosprezo o teatro e o ator da velha escola (p.235).

[8] A experiência com as peças de Ibsen também é muito reveladora, mas a sua reconstituição nos levaria longe demais.

[9] Em carta de 27.09.1889 a Aleksei Suvórin, editor de um jornal de São Petersburgo, Tchékhov comenta sobre a estréia de uma de suas peças: "Os homens não sabem os seus papéis e representam razoavelmente; as damas sabem os papéis e representam mal." (Cf. TCHÉKHOV, Anton P. Cartas a Suvórin (1886-1891). São Paulo: Edusp, 2002, p.264.)

[10] Cf. BRECHT, B. Écrits sur le théâtre. v. 1, Paris: L'Arche, 1989, p.202.

[11] BRECHT, B. Journal de travail, op. cit..

[12] Trocadilho com a palavra alemã murksen, que significa trabalhar mal ou, melhor ainda, malbaratar. Cf. nota da edição citada, p. 561, que ainda lembra ser bastante frequente este trocadilho em Brecht.

[13] BRECHT, op.cit., p. 26.

[14] Cf. BENJAMIN, W. Understanding Brecht. London: Verso, 1992, especialmente o ensaio "The Country where it is forbidden to mention the proletariat", pp.37-41.

[15] Cf. BENJAMIN, W., Conversations with Brecht (Notes from Svendborg), in op.cit., pp.105-121.

[16] Fredric Jameson desenvolve este tópico em O método Brecht, em especial na primeira parte, "Doutrina", item 8, "Da multiplicidade à contradição". Cf. JAMESON, F. O método Brecht. Petrópolis: Vozes, 1999, pp.101-124.

[17] BRECHT, Journal, op. cit., p.142 (17.10.40).

[18] BRECHT, B. Écrits sur le théâtre, v. 1, op.cit., p.368. Grifos nossos.

[19] Id., ibid., pp. 368-9. O problema das dificuldades é enfrentado nesta mesma chave por Adorno que, em ensaio com esse título publicado em Impromptus (Barcelona: Laia, 1985), anuncia ter-se inspirado em "Cinco dificuldades para escrever a verdade", texto brechtiano de 1934.

[20] BRECHT, B. A compra do latão. Op. cit., p.18. Como a tradução é portuguesa, pode ser oportuno esclarecer ao público brasileiro que as "peças fantásticas" a que se refere Brecht correspondem ao gênero que no Brasil se designa féerie; Stanislavski encenou nesse gênero O pássaro azul de Maeterlinck, entre outras de muito sucesso.

[21] BRECHT, Journal, op.cit., p.450 (15.09.1947). A edição inglesa, anotada por John Willett, tem o cuidado de informar que o livro foi "compilado e publicado sob os auspícios soviéticos e era evidentemente destinado a ser a bíblia do realismo socialista, a nova ortodoxia na Alemanha Oriental". Cf. Bertolt Brecht Journals (1934-1955). London: Routledge, 1993, p.511.

[22] Id., ibid., p.464 (04.01.1948).

[23] Mais conhecido no Brasil como diretor de cinema (Picnic, 1956; Nunca fui santa, 1956; Camelot, 1967), tem origem no teatro musical. Os interessados em Brecht e Weill devem saber que foi o diretor do musical Knickerbocker Holiday (1938), de onde vem a canção It never was you.

[24] LOGAN, Joshua. Introdução a STANISLAVSKI, C. A construção da personagem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976, p. 7.

[25] É impossível que ele não soubesse que Meyerhold só escapou da execução enquanto Stanislavski esteve vivo e pôde defendê-lo da sanha stalinista. Christine Edwards conta que a última aparição pública de Meyerhold aconteceu dez meses após a morte do mestre. Foi preso no dia seguinte à sua intervenção no Primeiro Congresso dos Diretores Teatrais da URSS, em que fez um discurso incendiário contra o realismo socialista. (Cf. Nicolai Gorchakov, apud Christine Edwards, op. cit. p. 97.)

[26] Cf. nota da edição dos Ecrits sur le théâtre, v.2, p.600.

[27] Brecht, Ecrits, v. 2, p.188.

[28] Idem, ibidem, p.187.

[29] Id., ibid., p.189.

[30] Id., ibid., p. 190.

[31] Id., ibid., p.191.

[32] Id., ibid., p.193.

[33] Helene Weigel in BRECHT, Ecrits, v. 2, op. cit., p.187.

[34] Brecht, ibidem, p.197.

[35] Brecht, A compra do latão, op. cit., pp.92-3.

[36] STANISLAVSKI, C. A criação de um papel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p.117.

[37] Idem, ibidem, p.118.

[38] Id., ibid., p. 156.

[39] Id., ibid., p.127.

[40] BRECHT, Ecrits, v.2, op. cit., p.181.

18 abril, 2010

Crime e Política*

Paulo Arantes

Na visão desconcertante de um historiador, nada mais parecido com o crime organizado do que o Estado nos seus primórdios. Nos primeiros tempos da formação dos modernos Estados territoriais europeus, não era muito nítida a distinção entre senhores da guerra, bandidos e governantes. Quando um chefe guerreiro e seu bando eliminavam os concorrentes e monopolizavam a violência num determinado território, sua primeira providência era passar a “governar”, quer dizer, extrair tributos das populações concernidas para financiar novas guerras de expansão e consolidação do seu domínio. Assim sendo, tampouco era muito clara a diferença entre arrecadação de impostos e extorsão. Criminosos quando se organizam adotam o mesmo esquema de chantagem: ameaçam com a violência e depois cobram o devido pagamento pela “proteção” que oferecem contra essa mesma ameaça. Não é outra a lógica originária do Estado, continua nosso historiador: os governantes também vendem proteção, sobretudo quando a repressão do Estado vem a ser a principal ameaça pairando sobre a cabeça do seu próprio povo, à qual acrescenta a dos inimigos, internos ou externos, que ele mesmo se encarrega de inventar ou provocar, e contra os quais oferece, é claro, “proteção”. Em bom inglês – a língua original do argumento que estou citando –, alguém que produz tanto o perigo quanto o escudo bem pago que o afasta chama-se racketeer.

Sem tirar nem por, essa a cena primitiva que Brecht entreviu na ascensão da “coisa imunda” que a República de Weimar pariu ao desmoronar. A última palavra do capitalismo, o sintoma terminal de toda uma civilização, sua “flor mais delicada” – como Brecht uma vez se referiu a Hitler – nada mais era afinal do que a repetição apocalíptica daquele “ato arcaico de despotismo”, na fórmula original de um filósofo para o gesto fundador da modernidade. Projeto inacabado ou o entra-e-sai de um grande show de gângsteres? Al Capone, dito Scarface, nunca se enganou a respeito: referindo-se certa vez a Napoleão Bonaparte, admitiu que este havia sido de fato o maior gangster da história (The world’s greatest racketeer), mas que mesmo assim ainda teria alguma coisa a lhe ensinar. No último ato como no prólogo, novamente compra e venda de proteção. “Nós o contratamos”, teria assegurado o aristocrata von Papen à camarilha que rodeava o Presidente do Reich, nosso estimado Dogsborough. Voltando à parábola de Brecht é bom não esquecer que Arturo Ui não oferece seus serviços a qualquer um, mas não por acaso a um truste. É que os lucros da coerção não exigem apenas escala. Os grandes empresários da morte não poderiam prosperar sem a indispensável alavanca dos monopólios, a começar pelo mais decisivo deles, o da violência. Outra vez o estágio imperialista mais avançado denuncia seu caráter terminal ao emendar na era inaugural da dominação direta, a apropriação violenta sem maiores rodeios. Que a história portanto tenha sido sempre a história dos monopólios – um enredo de gangues e protection rackets – dá notícia a incrível semelhança entre o modus operandi ancestral da máfia e as grandes organizações dos big business, tirante talvez a interpretação um tanto literal da imperiosa necessidade de liquidar a concorrência e enquadrar os clientes recalcitrantes. Entre tantas outras, a observação se encontra num antigo ensaio rigorosamente brechtiano de Hans Magnus Enzensberger sobre a Chicago de Al Capone, a seu ver, o modelo da sociedade terrorista do século XX, aliás uma wide open city como Mahagony, onde se confundiam, como se há de recordar, o Imperium dos gângsteres e a ditadura do divertimento compulsivo. Ninguém mais ajustado e integrado ao mundo moderno dos negócios do que aquele enxerto bárbaro de outras eras: a mais avançada sociedade capitalista do mundo soube encaixa-lo como se estivesse preparada desde sempre para a regressão. Um amálgama exemplar de anomia selvagem e do mais estrito conformismo, que na década seguinte Hitler levaria a seu fecho conclusivo.

Um ciclo histórico depois, o ventre que pariu a coisa imunda continua fértil. O desenvolvimento descortinado pela parábola brechtiana terá sido talvez provisoriamente suspenso, mas não interrompido. Ele ameaça se completar através de uma guerra sem fim de âmbito global, que tende a se fragmentar numa profusão de guerras civis legais, sancionadas por um estado difuso de exceção, eternizando-se em meio à indiferença das cliques blindadas e a tumulto crescente dos perdedores confinados no arquipélago de bantustões em que o mundo está se transformando. Um terreno de inesgotável fertilidade para a compra e venda de proteção. Em tempo, já que o demônio da analogia anda solto novamente: o 11 de setembro de Adolf Hitler caiu num 27 de fevereiro (de 1933), data do incêndio do Reichstag; no dia seguinte, o estado exceção foi proclamado, em estrita conformidade com o artigo 48 da Constituição de Weimar, só que nunca mais foi suspenso; outra vez não por acaso o decreto que instituiu aquela ditadura constitucional de última geração, alegando urgência na defesa da sociedade contra os seus inimigos de turno, era uma ordem de “proteção”, autorizando uma indefinida “detenção preventiva” ou “custódia protetora” das referidas populações infectadas, “proteção” assegurada por espaços juridicamente vazios: os campos. Confrontado com o limiar que estamos atravessando, o raio de manobra do gangster de todos os gangsteres era relativamente provinciano. As tábuas do palco hoje sim representam toda a cena do mundo, e nela opera um incomensurável racketeer. Os senhores da guerra estão de volta, até mesmo na forma arcaica porém high-tech dos novos mercenários terceirizados por meio de empresas militares privadas. Como na pré-história do sistema de dominação cuja hora da verdade está de novo se reapresentando, já não é mais inequívoca outra vez a separação entre chefes de guerra, governo e crime organizado. Aos quais veio juntar-se nestes últimos tempos de imperialismo da segurança a figura patética do agente humanitário, com ou sem fumigações. Nada mais parecido com o cenário original da parábola de Arturo Ui do que o Iraque ocupado e privatizado de hoje. Estão todos lá: um Vice-Rei, os negócios do cartel da couve-flor e as forças da “proteção” contratadas para vigiar uns e outros. Sem falar na mescla original de estado-de-sítio – próprio da fusão entre “governança” e guerra intermitente – e a anomia característica de uma nova “fronteira”, na acepção americana do termo. Não é segredo que desde a guerra do Golfo, a superpotência remanescente vende – e muito caro, afinal seus custos de manutenção são astronômicos – “proteção” contra a ameaça de um inimigo tão proteiforme quanto o caos sistêmico em que o mundo do capital está mergulhando. Sabemos todavia que este descomunal sorvedouro de riqueza alheia, que este país rentista por excelência, como nos bons tempos do imperialismo clássico, é ele mesmo a fonte da ameaça para si mesmo e para o resto do planeta. Seria preciso acrescentar todavia que não se trata de ameaças contra a ordem mundial, mas que a verdadeira ameaça é esta mesma ordem mundial, sendo o capitalismo hoje sinônimo de catástrofe. Como no capitalismo turbinado de agora não é mais possível distinguir acidente de atentado, tudo se passa como se o próprio sistema chantageasse a si mesmo e fosse o seu próprio mega-gangster. A apologética contemporânea estilizou a desgraça afirmando que a ultramodernidade é antes de tudo uma “sociedade de risco”. Estamos vendo que no fundo se trata mesmo de uma sociedade de rackets, como Arturo Ui se encarregara de demonstrar.

* Texto publicado no programa do espetáculo A Resístivel Ascensão de Arturo Ui, 2004.

Teatro de Intervenção? *



Iná Camargo Costa**


Já não é, se é que algum dia foi, uma evidência que o fato de fazermos teatro de grupo assegura o nosso direito à existência. Usando os mais diversos mecanismos de negociação com a sociedade, tanto a organizada quanto a desorganizada, hoje lutamos simplesmente pelo direito à existência como artistas, o que por sua vez também não é evidente. Em outra formulação: não é evidente que temos o direito de ser artistas. Pelo contrário, tal como se organiza hoje, a sociedade como um todo não nos reconhece como tais. Artistas são os que fazem, nesta ordem, TV, cinema, shows e espetáculos teatrais apoiados por leis de incentivo e pela mídia.
Depois de me aposentar, eu comecei a fazer uma brincadeira com os amigos que me telefonam reclamando que eu sumi. Respondo que é verdade, porque entrei para o submundo do teatro. Acontece que essa brincadeira é séria porque o teatro que nós fazemos vive numa espécie de clandestinidade. Isto equivale dizer que a sociedade não está interessada em nós; nós não somos nem sequer uma ameaça para essa sociedade.
É preciso tirar conseqüências dessa realidade, começando por responder a perguntas básicas, tais como: Queremos ser artistas para quê? E no “para quê” mora o perigo. Porque quando a gente fala para, está pressupondo uma estratégia. A pergunta é: nós temos uma estratégia?
O tema que me foi proposto é intervenção. Intervenção é sempre uma tática e tática pressupõe estratégia. Se nós não tivermos uma estratégia, qualquer intervenção nossa pode ser apropriada ou esvaziada pelos beneficiários do atual estado de coisas. Para ficar num exemplo bem próximo, a intervenção dos Narradores aqui na CadoPo pode ser transformada num recurso do tipo ponta de lança. E estou usando terminologia bélica de propósito. Ponta de lança numa estratégia de “gentrification” que está em andamento aqui na região da Luz. O trabalho de vocês pode transformar a CadoPo num ponto “cult”, e vocês, nesta miséria em que estão e estão trabalhando, podem contribuir para a valorização dos terrenos do entorno.
Um contra-exemplo. A adesão do setor de cultura do MST ao projeto dos pontos de cultura do Ministério da Cultura não corre esse risco porque pressupõe uma estratégia. Eles aderem numa tática decidida entre eles. E, ao aderir aos pontos de cultura, sabem que estão produzindo diversos tipos de material, inclusive em eventos como o Teia, que aconteceu lá no Ibirapuera, que serão, já foram e estão sendo apropriados até mesmo para fins de propaganda eleitoral. Mas esse tipo de apropriação que o governo pode fazer das coisas em que eles estão trabalhando não produz nenhum tipo de “contravapor” sobre o que eles estão fazendo justamente porque os pontos de cultura para o MST correspondem a uma atividade entre muitas, que têm por trás uma estratégia.
Então este é o primeiro problema que eu queria expor a propósito do tema intervenção. É evidente que se temos ou não uma estratégia é uma questão que precisa ser debatida. Eu pessoalmente, dentro da minha participação, não consigo atinar com ela, se é que ela existe. Isto é uma coisa que me interessa. Se nós não temos, precisamos forjar. Se possível, coletivamente. Então eu quero, a partir daí, enumerar algumas idéias a respeito do que nós somos e dos riscos que nós corremos hoje, na luta pelo nosso direito à existência.
Não preciso entrar em detalhes, mas eu trouxe só para vocês verem que tem até em livro o manifesto contra o trabalho. Eu acho que nós ainda não lemos e não tiramos as devidas conseqüências deste manifesto. Porque nele estão alguns dos elementos para a gente se identificar. E eu me refiro a uma identificação de tipo sociológica. Porque eu considero, já disse isso, está no texto do Sarrafo da retomada, que nós somos parte da população supérflua. E como parte desta população supérflua, nós, que fazemos teatro, sobrevivemos nadando cachorrinho. Quem nada cachorrinho não tem rumo, fica nadando só para não se afogar em meio aos excluídos em pleno apartheid social.
Nós precisamos tirar conseqüências sociológicas e políticas deste fato. A principal delas, e esta é também uma provocação: como parte do “lupensinato”, que é o nome tradicional em linguagem política para gente como nós, nós temos sérias deficiências políticas. Uso deficiência para não falar em inexperiência. Em meio à inexperiência política e às deficiências que são inclusive de informação, a nossa tendência é cair sem maiores vacilos na mais aberta reação social e ideológica. Um exemplo de reação que às vezes ocorre até inadvertidamente, em que ou a gente não encobre ou abre caminho para ela. Nós alegamos à sociedade, através do Estado, que nós fazemos pesquisa estética. Isto pode funcionar como álibi para os mais graves tipos de estelionato social. Eu estou falando de 171 mesmo. Sem aviso prévio, sem discussão que esclareça, nós estamos nos equiparando aos cientistas e, portanto, estamos dando como certo que somos qualificados para uma pesquisa e isso também não está demonstrado. E no entanto, em nome de uma coisa que não está demonstrada, não é geral, não é garantia, não é fato que todos os grupos fazem pesquisa estética, em nome disso nós pedimos dinheiro ao Estado para pesquisar. E como, ao mesmo tempo, a nossa pesquisa resulta em arte, nós já abrimos a porteira para o 171, porque a pesquisa pode ser qualquer coisa. E nós ainda não nos detivemos sobre essa discussão. Dá para perceber o horizonte do estelionato social? Nós pedimos dinheiro ao Estado para fazer uma pesquisa que está muito longe de ser justificada nos seus próprios termos. Essa discussão é uma das que precisam ser feitas.
No dia que eu vim aqui, dia 2 de maio, ela foi levantada em diferentes intervenções, mas só foi levantada. Eu tenho a impressão de que o resultado da última Lei de Fomento já mostrou para nós como é possível, por essa porteira, praticar estelionato social. Pois bem: a Lei de Fomento corresponde a muitos capítulos das providências que nós tomamos sem dispor de uma estratégia, ou se há uma estratégia, como ela não está esclarecida, nós ainda não sabemos para onde vamos. Nós só estamos nadando cachorrinho.
Três providências já foram tomadas a partir do momento em que este estado de coisas foi mais ou menos diagnosticado. A primeira, da qual eu não preciso falar, foi o lançamento do Movimento Arte contra Barbárie. O movimento Arte contra Barbárie é um instrumento ainda, um instrumento válido, nós devemos usá-lo, mas acredito que ele próprio precisa ser discutido e redefinido. Mas os dois pontos a partir dos quais ele se apresentou continuam na ordem do dia para nós. Quais eram as “estratégias”, os alvos imediatos do Arte contra Barbárie quando de seu lançamento? Um primeiro, decorrente da postura defensiva dos supérfluos, era a luta contra as leis de incentivo fiscal e a proposição, naquele momento ainda vaga, de políticas públicas para a arte e para cultura. Depois volto a este ponto. E o segundo era formulado assim: “disputa pelo pensamento sobre arte”. Igualmente defensivo. Tratava-se naquele momento de desfraldar uma bandeira que, ela própria, está longe de ter sido esgotada. Porque continua valendo, continua hegemônico o pensamento vinculado ao mercado e aos interesses da indústria cultural, portanto da arte. Nós não demos um único passo, nem ao mesmo nas nossas fileiras, para aprofundar todas as conseqüências que a disputa pelo pensamento sobre arte implica. Mas, de qualquer maneira, eu acho que essas duas bandeiras, digamos assim, justificavam e continuam justificando o movimento Arte contra Barbárie.
Uma primeira vitória do Arte contra Barbárie corresponde à segunda providência que já foi tomada. Foi justamente a Lei de Fomento, uma lei que ela própria, vou voltar também a este ponto, mas ela própria corresponde a conseguir por caminhos nem sempre muito claros uma mínima segurança do nosso direito à existência. Agora, as contradições da Lei de Fomento começam a se multiplicar e até agora nós não fizemos todas as discussões relativas a ela.
E a terceira providência do Arte contra Barbárie, foi a criação do jornal O Sarrafo, que é um organismo de intervenção, ele próprio, uma intervenção que prioritariamente visa os próprios integrantes do Arte contra Barbárie, mas que até agora não conseguiu nem ao menos ser um instrumento de organização do debate. Então, o próprio jornal O Sarrafo ainda engatinha e ainda nada cachorrinho. Estou falando como pessoa diretamente interessada e envolvida, aliás com os três momentos da luta. Não estou me excluindo, de maneira nenhuma, dos problemas que estou enlencando, eu faço parte deles. E até agora o único horizonte que o Arte contra Barbárie conseguiu formular e que foi nacionalmente acolhido é justamente o desdobramento do projeto de Lei de Fomento Municipal que na atual circunstância se desdobra na luta pelo Prêmio Nacional de Teatro e pela regulamentação do Fundo Nacional de Cultura que seria a principal fonte do financiamento do Prêmio Nacional de Teatro. Estamos nesse ponto agora. A reunião de 4ª feira (3 de maio) serviu para encerrar a discussão nacional, no sentido de formular um texto que contemple o debate que aconteceu nacionalmente, de dezembro até agora. É este o estágio em que estamos. Este estágio, como vocês podem perceber, corresponde a uma continuidade de um passo que foi a Lei de Fomento, que vai fazer cinco anos. Nós estamos avançando sem ao menos dispormos de maneira tranqüila de um balanço radical do que é a nossa experiência com a Lei de Fomento.
O que estou falando em relação à Lei de Fomento e ao Prêmio pode ser resumindo no seguinte, na tentativa de dar mais um passo em relação ao que eu acabei de falar. Sem dispor ainda de uma estratégia definida, nós estamos apenas e com toda a legitimidade, disputando o fundo público. Se vocês quiserem, depois dá para retomar, mas fundo público nos termos em que o Chico de Oliveira já explicou nos seus livros. Agora, legitimidade aqui é conferida pelo discurso hegemônico, o discurso neoliberal e social democrata. Na intervenção do dia 2 o Moreira adiantou um pouquinho a consciência desse limite. Não sei se vocês estavam todos, vocês devem se lembrar: nós fingimos que acreditamos no discurso sobre o que é esse Estado. Nós sabemos que não é isso e foi fingindo acreditar nele que propusemos a Lei de Fomento e estamos propondo o Prêmio Nacional de Teatro.
Acontece que, para além do que já foi dito, os limites de uma estratégia como esta podem ser identificados pelos dois capítulos do Manifesto contra o Trabalho que se chamam respectivamente: A sociedade neoliberal do apartheid e O apartheid do neo-Estado social. Isso quer dizer o seguinte: ainda nem esboçamos a perspectiva de sair de uma luta que não apenas é defensiva como ainda nos defendemos com as armas da luta de todos contra todos. Relativamente organizados, estamos apenas reinvidicando a nossa parte. Este é o limite da Lei de Fomento, do Prêmio de Teatro e do Fundo Nacional de Cultura. Nós estamos lutando com os instrumentos da sociedade liberal e os instrumentos da social democracia. Essa luta tem fôlego curto, ela não tem futuro. E eu não estou nem falando mais no risco do primeiro exemplo, porque isso já começou a acontecer, isto é, os artistas cujo direito à existência a sociedade reconhece, já invadiram a nossa praia. Para mim, o melhor exemplo é a Fernanda Montenegro disputar o Prêmio Miriam Muniz. Esta estratégia, repito, é limitada pelos termos da democracia liberal, ou pelas táticas da social democracia que têm esse vício de origem.
Agora, feita essa primeira passagem com a minha moto-niveladora… Eu não vim aqui para cultivar ilusão, gente, vocês sabem que não é do meu feitio. Vou então passar para a parte propositiva da intervenção, porque isto é uma intervenção, com todos os meus limites, a saber: sou uma sobrevivente dos tempos em que havia luta política, em que havia partidos de esquerda, esses tempos… Eu mesma me considero uma dinossaura. Quando nada, porque eu já tenho 54 anos, então… (risadas). Do meu sítio arqueológico, estou um pouco falando sob o efeito do seminário que teve em Araraquara na semana passada ao qual eu compareci como objeto de pesquisa. O seminário era sobre política e cultura dos anos 70. Além de dar um depoimento de geração, porque eu fiz política e cultura nos anos 70, ainda tinha que lutar contra um adversário que, entre outras coisas, achava que a política tinha se esgotado nos anos 50, que depois da ditadura não teve mais política no país, e que a cultura progressista já tinha acabado depois da semana do dia 22. Claro que estou fazendo caricatura, mas em parte aquela intervenção tinha a intenção política de esvaziar as coisas que nós fizemos. Vocês podem imaginar os estados de fúria em que eu entrei seguidamente ao longo da semana. Ainda estou sob o efeito dessa batalha campal. Mas as batalhas campais da universidade são sempre… Mas enfim, estou falando já na qualidade de objeto de pesquisa, uma voz que se ergue daquelas tumbas dos anos 70.
Para mim, a estratégia é muito simplesmente destruir o sistema capitalista e construir uma sociedade socialista. E se não for isto, estou fora, é tão simples assim. Tendo em vista esta estratégia, é em nome dela que eu vou falar e é em nome desta estratégia que eu acho que dá para falar de aspectos em relação aos quais a gente tem que pensar em formas de luta enquanto produtores teatrais. Produtores teatrais que reivindicam um direito à existência que está muito longe de ser reconhecido pela sociedade, tal como ela está instalada entre nós.
Primeira providência, dada a estratégia: estudar e enfrentar o sistema capitalista tal como ele aparece no nosso campo trabalho. Estou falando obviamente da indústria cultural, a começar por sua manifestação física, como obstáculo para nós. A manifestação física da indústria cultural como obstáculo é o show business que hoje mais do que nunca é internacional. Aliás, eu estou falando isso também sob o efeito da matéria sobre as filas que se formaram para comprar ingressos para o Cirque du Soleil. A indústria cultural é um obstáculo para nós inclusive no sentido físico; não estou nem falando daquela parte que eu já disse, porque a sociedade reconhece como artistas esses…
Pois bem, entre outras possíveis providências, para enfrentar a indústria cultural, nós conhecemos pelo menos três modalidades de luta. A primeira é o combate propriamente, enfrentar mesmo. Esse enfrentamento pode se dar numa modalidade que nunca vingou muito aqui no Brasil, mas é uma coisa que nós precisamos ver como fazer. A inspiração é anarquista, e consiste em desmoralizar a indústria cultural. Com que armas? Nós precisamos desenvolver estratégias de desmoralização da indústria cultural e naturalmente disputar com ela e nela. Isso significa encarar os trabalhadores do show business como nossos semelhantes. O que equivale a abandonar a aristocrática tática de desprezá-los porque eles estão vendidos para a indústria cultural. Esta é uma tática aristocrática. Nós somos melhores do que eles porque eles estão vendidos. E a nossa aristocracia resulta em irrelevância social. Em relação à industria cultural nós precisamos descobrir quais os meios e partir para o ataque. Se bem que eu acho que, antes do ataque, é preciso reconhecer que ela existe, o que eu não vejo nenhum de nós fazendo.
O segundo passo, depois de reconhecida a indústria cultural como obstáculo, e o show business na forma do espetáculo, é enfrentar a mídia propriamente dita. Eu estou falando da imprensa e da televisão principalmente. Se vocês lembram qual é a estratégia, se a estratégia for essa, nós temos que encarar a disputa pelos meios de produção cultural. Além disso, é uma coisa que em parte nós estamos fazendo mas, como eu já disse, estamos fazendo pelos métodos da política neoliberal ou social democrata, nós temos que enfrentar o Estado na sua aliança com a indústria cultural, disputando inclusive com o show business internacional os espaços públicos que são exclusivos ele, do show business internacional. Aqui em São Paulo tem dois exemplos claros: o Teatro Municipal e a Sala São Paulo. Por que nenhum de nós se coloca o desafio, já que a questão é espaço alternativo, de fazer um espetáculo processional lá na sala São Paulo, por exemplo? É uma pergunta. Aqui tem mil coisas que precisam ser feitas, e uma delas é encarar as OSCIPs. Como, por exemplo, a que administra o Teatro Sérgio Cardoso. O equipamento do estado está entregue para uma ONG governamental. Não é o máximo? É uma organização não-governamental governamental. Chama-se OSCIP. A administração do teatro está na mão de uma OSCIP e acabou, ninguém discute, ninguém denuncia, ninguém vai à luta, em relação a isso. Isto significa que nós, que revindicamos que a sociedade reconheça nosso direito à existência, não nos animamos nem mesmo a reclamar da privatização dos espaços públicos onde se faz o que nós fazemos. E por último: eu não vi, desde que começou a administração Serra, nenhuma denúncia da tática usada por esta administração de deixar os teatros de bairro administrados pelas sub-prefeituras. Porque o resultado disso na minha região é uma temporada do Ari Toledo no Teatro Cacilda Becker. O que estamos fazendo em relação a isso?
Por fim, temos que encarar a luta ideológica começando pela superação da idéia liberal, isto é, burguesa de arte. Para isso, Brecht e Benjamin já nos deram régua e compasso. Para nós, que fazemos teatro de grupo, é relativamente fácil entender a primeira coisa. A arte é sempre trabalho coletivo. No entanto, até hoje nós não encaramos o passo adiante que essa experiência exige. Brecht disse mais ou menos o seguinte: uma economia planificada, que é a da ditadura de mercado, já se estabeleceu na arte, em todas as suas modalidades, desde o séc. XIX, sem que o conceito de arte tenha se libertado do valor que a ideologia dominante atribuía à personalidade, liberdade individual e superstições conexas. Há muito tempo é sabido que a arte é trabalho coletivo e nós ainda discutimos autoria, liberdade individual, essas coisas…
O conceito de teatro com o qual nós ainda trabalhamos é o conceito burguês de teatro. Benjamin disse, em outras palavras, o seguinte: não será cultivando a teologia da arte (é assim que ele chama a doutrina da arte pela arte) que artistas e intelectuais encontrarão respostas à pergunta por seu papel e o da arte na sociedade capitalista. Estas respostas serão encontradas na luta por um lugar na produção, o que equivale a dizer na luta pela libertação das forças produtivas, porque artistas e intelectuais desempregados ou supérfluos também configuram desperdício de forças produtivas. (Em parte, isso que eu estou dizendo está no texto que saiu publicado na revista do Oi Nóis Aqui Traveiz). Mas continuando: a libertação das forças produtivas, aprisionadas pela indústria cultural, depende da apropriação dos meios de produção pelos verdadeiros produtores, os artistas e os técnicos, pois os meios de produção, distribuição e exibição estão presos nas garras do capital. Melhor do que lamentar o rumo que as coisas da “cultura” tomaram, é entender como funciona a realidade e identificar no que já aconteceu quais as tendências conservadoras e quais as revolucionárias. Para isso, é preciso assumir-se como parte interessada num campo de forças opostas. A renúncia ao enfrentamento com a indústria cultural equivale à opção pela irrelevância social. Era isso que eu tinha a dizer para começar a conversa. A bola está com vocês.
* Intervenção realizada no Seminário Cenas de Intervenção, realizado em Maio de 2006.
** Iná Camargo Costa é professora aposentada da FFLCH/USP.